Iniciaremos este trabalho refletindo sobre o significado da palavra adoção.
No dicionário Michaelis, encontramos o significado desta e de outras palavras relacionadas a ela, como adotante e adotivo.
O termo adotivo nos chamou atenção por ser definido como estranho, enxertado ou postiço, nos remetendo a idéia do senso comum sobre filhos adotivos, pois em muitas culturas são vistos como postiços; enxertados numa família que não é a sua de origem.
Como todo enxerto, poderá aderir ao ramo, tornando-se parte integrante da família, ou ser rejeitado por ele, mantendo-se estranho, alheio e algumas vezes expelido.
Poderá ainda se fundir de tal forma a esta nova configuração familiar que perderá suas raízes.
Estas idéias trazem em essência o dilema da adoção – a incerteza de seu futuro.
DILEMAS NA ADOÇÃO
Muitos são os questionamentos que surgem quando pensamos em adoção, como por exemplo:
Qual a história anterior a adoção?
Houve institucionalização ou não?
Quanto tempo permaneceu?
Em que idade?
Que privação sofreu?
Qual a história de quem deseja adotar?
Trata-se de um casal ou de uma pessoa solteira?
O que motivou a adoção?
A impossibilidade de ter filhos ou o desejo de acolher uma criança?
Todas as perguntas são tentativas de nortearmos os diferentes aspectos que envolvem a adoção.
Esta implica numa gestação psíquica e no nascimento de uma relação parental, e como tal, geradora de angústias, fantasias, preocupações e ambivalências.
Winnicott vai falar de algumas armadilhas no processo de adoção, salientando a importância de se pensar na motivação que está levando os pais a adotarem, pois se esta for para atender apenas as próprias necessidades, poderá culminar numa adoção fracassada, que seria tão desastrosa para a criança, ao ponto de ter sido melhor a ausência da tentativa.
O autor faz referência também ao tempo levado para se concretizar uma adoção e às conseqüências de uma demora nesses casos, demonstrando que já naquela época havia uma preocupação com um longo período levado por este processo.
Esta preocupação se mantém até os dias de hoje, visto que no Brasil acabou de ser sancionada a nova lei nacional de adoção, criando mecanismos para acelerar o processo adotivo e evitar que os menores fiquem mais de dois anos em algum abrigo.
Nesta questão temporal citada, o autor fala dos “pais que finalmente decidiram adotar um bebê estão prontos para adoção, e a demora de inclusive uns poucos meses pode não ser sadia”. Destacamos em negrito a palavra finalmente para reforçarmos que quando os pais decidem pela adoção, engravidam desta idéia, assemelhando-se aos pais biológicos, que esperam ansiosamente o nascimento do seu bebê.
OBSERVAÇÃO DA RELAÇÃO MÃE BEBÊ
Tivemos a oportunidade de acompanhar numa observação da relação mãe bebê, os obstáculos no percurso de uma adoção e a importância de sua legalização para construção da parentalidade.
Uma adoção concluída judicialmente vai permitir estabelecer o sentimento de pertencimento à família, autorizando mãe e bebê a vivenciarem seus papéis com maior segurança na nova configuração familiar que começou a ser delineada.
Fragmentos da observação.
Bia é uma mulher solteira e bem sucedida, com mais de quarenta anos e que não pode ter filhos. Decidiu pela adoção, mas enfrentou muitas dificuldades burocráticas neste processo, o que impediu a chegada de uma criança por essa via.
Seus amigos sabiam sua intenção de adotar e através deles recebeu a notícia de uma criança que precisava de cuidados, pois a mãe biológica, que chamarei de C, ainda adolescente, não tinha condições emocionais e financeiras para cuidar de seu bebê.
Bia passou a se responsabilizar pelos cuidados de G. quando ela tinha três meses, com apenas autorização verbal de C.
Entretanto, algum tempo depois esta desistiu, retomando a filha e permanecendo com ela por quase um mês sem dar notícias.
Bia foi avisada de que a criança estava sendo deixada sozinha enquanto a mãe saía para noitadas e procurou a mãe biológica na tentativa de tentar novamente cuidar de G. Obteve nova autorização verbal, passando a criar a menina “como sua filha” até os dias de hoje e permanecendo em contato esporádico com a mãe biológica.
Quando G. estava com um ano e meio, Bia soube, através de sua analista, do trabalho de observação da relação mãe bebê (método Esther Bick) e entrou em contato com a coordenadora para solicitar uma observação, pois estava preocupada com os efeitos dessas idas e vindas da filha à casa de C.
Um dos pontos que nos chamou a atenção durante o processo de observação foi a constante ambivalência da mãe, que ameaçava com freqüência devolver a criança caso esta ficasse parecida com sua mãe biológica.
Porém, com a obtenção provisória da adoção legal, esta fala não mais apareceu nas observações, o que nos fez pensar na importância desta autorização para a concretização da relação parental.
Winnicott corrobora com o que foi percebido nesta observação ao dizer que “uma adoção legal dá a criança o sentimento de pertencer à família”.
Acrescentamos a esta idéia que o mesmo sentimento é também partilhado pelos pais, pois “quando existe um sentimento de 'estar em família', as relações entre a criança e os adultos podem sobreviver aos períodos de desentendimento”.
Contudo, isto não significa dizer que haverá ausência de estranhamento nessa adaptação, pois é natural que as crianças apresentem dificuldades neste novo ambiente.
Uma adaptação muito rápida pode indicar “uma aceitação artificial das novas condições”, culminando na formação de um falso self como forma defensiva da adaptação psíquica.
Winnicott divide os problemas da adoção em duas categorias:
A primeira estaria relacionada aos problemas comuns de uma adoção e inerentes a esta situação, e a segunda seria referente às complicações anteriores a adoção, ou seja, à inadequação dos cuidados com o bebê neste período.
Lembrando que qualquer criança necessitará não apenas dos cuidados físicos de alimentação, higiene e vestuário, como também de uma mãe-ambiente que lhe dê sustentação, pois o excesso ou a ausência desses cuidados comprometerão seu desenvolvimento emocional saudável.
A ausência desses cuidados representa uma privação, que é definido como falta do necessário à vida segundo o dicionário Michaelis. Este significado vai de encontro às idéias de Winnicott, que utiliza ainda o termo de privação para a existência de algo que a criança já teve em algum momento da vida e perdeu.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluindo, quando o amadurecimento é saudável e num ambiente adequado, o “lactante desenvolve meios para ir vivendo sem cuidado real.
Isto é conseguido através do acumulo de recordações do cuidado, da projeção de necessidades pessoais e da introjeção de detalhes do cuidado, com o desenvolvimento da confiança no meio”.
Mas aqui estamos pensando em crianças adotivas, que podem ter tido esse amadurecimento saudável num ambiente adequado ou não, e também influenciará o momento, a forma e o manejo na adoção.
Em tais crianças, são acumuladas as recordações de cuidados interrompidos ou inadequados, podendo causar um estranhamento a nova mãe ambiente.
Isto demandará maior dedicação dos pais adotivos para que uma confiança seja restaurada com um sentimento de pertencimento a esta família.
Entretanto, algumas famílias podem ter dificuldade na aceitação da história pregressa da criança e ao considerarem seu nascimento como sendo o momento da adoção, criam um pacto de silêncio, ignorando assim, possíveis traumas vividos por ela.
Este silêncio cria um vazio por impedir que vivências e sentimentos traumáticos possam ser ressignificados pelo holding e manejo adequados da nova família, dificultando o alcance de uma das funções que a própria adoção traz em si, a função terapêutica para pais e filho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MICHAELIS – Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos. Disponível em: Acesso em: 05 de Agosto de 2009.
WINNICOTT, D.W. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000.
Privação e delinqüência. 4ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artmed, 2008.
Pensando sobre crianças. Porto Alegre: Artmed, 2008.